Quando tinha uns 11 anos, descobri sem querer o que viria a se tornar um dos meus livros preferidos até hoje. Estava naquela fase deliciosa em que se tinha palavras escritas em um papel, eu lia. Em casa, no restaurante, no carro, entre o shampoo e o condicionador no banho (comentei disso nessa edição aqui). Entre livros presenteados e achados pelos cantos, encontrei “Amanhã você vai entender”.
Adorei a história que lia mas não foi ela que me deixou rendida. Logo cedo descobri, por causa dele, meu interesse contínuo em falar do tempo. Menos como temática, mais como linguagem. Ainda criança, vidrada naquelas páginas, li como se ganhasse mais vida a cada palavra. Fiquei encantada. Depois de um tempo, uma amiga chamada Beatriz me pediu emprestado o que já tinha se tornado meu livro xodó. Relutante, cedi. Foram meses de desconfiança até ela confessar que tinha perdido. Procurei um tempo outra edição mas não tive sorte. Depois de um tempo, desisti. Anos depois, uma outra amiga Beatriz (essa amiga até hoje, leitora querida dessa newsletter e uma das pessoas mais importantes da minha vida) me presenteou com uma edição nova e dedicatória que guardo com tanto carinho. Lá estava o tempo, jogando comigo.
Naturalmente, esse livrou virou uma pequena parte da minha história. Já tinha comentado antes dele no fim de outra edição mas hoje compartilho um dos meus trechos preferidos. Sinto que é nele que vive o motivo desse amor tão antigo. Nesse momento da história, a protagonista Miranda relata um dos treinos que sua mãe faz para participar de um reality de perguntas e respostas com celebridades, buscando um prêmio em dinheiro que ela precisa vencer.
Mamãe fecha os olhos, e eu sei que ela está levantando uma pontinha de seu véu. Ela faz um sinal positivo com a cabeça, e nós começamos.
Mamãe diz que todos nós temos um véu que nos separa do restante do mundo, como o que as noivas usam no dia do casamento. Só que esse é invisível. Andamos felizes com um véu invisível no rosto. O mundo fica um pouco borrado, mas gostamos dele assim.
Às vezes, porém, nosso véu é tirado por alguns instantes, como se um vento o soprasse para longe. E quando ele levanta, podemos ver tudo como realmente é, por apenas aqueles poucos segundos antes que o véu volte a seu lugar. Enxergamos toda a beleza, a crueldade, a tristeza e o amor. Mas, na maior parte do tempo, ficamos felizes por não vermos isso. Algumas pessoas aprendem a levantar seu véu sozinhas. Assim, não precisam mais depender do vento. Ela não quer dizer que haja um véu de verdade. E não se trata de mágica, ou de que talvez Deus esteja olhando diretamente para você, ou que um anjo esteja sentado ao seu lado, nem nada desse tipo. Mamãe não pensa assim. É apenas seu jeito de dizer que, na maior parte do tempo, as pessoas se distraem com as coisas pequenas e ignoram o mais importante. Para jogar no Círculo dos Vencedores, mamãe precisa entrar em um determinado estado de espírito. Ela diz que é como levantar uma pontinha de seu véu, o suficiente para ver mais do que o normal, mas não a ponto de ser completamente distraída pela vida, pela morte e pela beleza disso tudo. Ela precisa abrir a mente, diz, para que, quando as dicas comecem, possa enxergar o fio que as une.
Já fiquei anos sem pensar nesse livro. Nessa história, na bonita descrição do tempo como um anel cravejado de diamantes, das tantas possibilidades de “amanhãs” que a gente não conhece. Mas recentemente revisitei um lugar conhecido que precisava fazer as pazes. Tive a sensação de encarar meu passado e futuro lado a lado. Como numa ilha distante em que o tempo não me atravessa mas só se senta ao meu lado em silêncio, como bonança que sabe a hora de chegar. Apertamos as mãos e declaramos trégua, nem que por uns dias. Lembro do véu. E do trecho que fecha o capítulo desse livro que desenha muito do meu olhar até hoje. Sinto o vento no rosto mais uma vez.
Pensei muito sobre esses véus. Fico me perguntando se, de vez em quando, alguém nasce sem ele. Alguém que veja o mais importante o tempo todo. Como você, talvez.
Essa mancha preta não estampará o seu peito. O céu rasgado ainda vai iluminar essa sala, e quando isso acontecer, você não vai querer estar dobrando a esquina de um bairro qualquer buscando a solução que vai limpar as marquinhas dos meus ossos. Ontem eu acreditava em finitude, mas hoje eu passei o dia pensando que nem tudo possui um limite. Você acorda e se sente em estado de abandono, daqueles que fazem a carne e o espírito discutirem entre si se ocupam de fato o mesmo corpo, mas no momento em que te vi olhando para a disposição das nuvens no céu, vi que você é irremediavelmente feliz, independente do preço que se pague por isso. Não se acanhe e inspire profundamente nas flores amarelas que comprei para colorir o quarto. Quando expirar, deixe no ar tudo o que foi guardado nas últimas semanas. São nesses dias que os seus músculos vão descobrir um limite, mas respirando um pouco mais fundo você vai perceber que ainda nem se conhece direito. Vão demorar alguns anos até que consiga entender se quer morar em uma ilha ou explorar o continente. Até que isso aconteça, lave os pratos já limpos debaixo de sua pia, encere o chão de taco de uma casa que não é sua e devolva em outra praia as conchas que você juntou nos últimos anos. É preciso estar atento e preparado para o dia em que você descobrir tudo o que não te aconteceu, ou então será muita coisa para arrumar. Antes de sair, vou deixar na cozinha as canetas que você me emprestou, e uns papéis onde tentei desenhar as sombras de cada luz que tentou nos atravessar nos últimos dias. Eu já não sei se as sombras pertenciam à luz ou a nós, mas nunca me diga se jogou ou não esses desenhos fora. Se você se sentir inseguro no meio de tudo isso, não clareie as incertezas construindo uma fogueira de porcelanato. Se afastando da chama você também se ateia em fogo, e não vai adiantar percorrer a cidade pedindo ajuda. Só você poderá encontrar a sua salvação. Amanhã te trago flores roxas e azuis, e daqui uma semana vamos estar nos perdendo na beleza colorida dessa casa. Gosto que a vida seja assim; você esticando e puxando coisas que jamais puderam crescer, e eu aqui encolhendo tudo o que se tornou desproporcional. Só te peço pra que no dia que você descobrir sua verdade, vá mesmo embora. Corra pelas costas do vento e, na despedida, me dê um tchau. Vou estar espiando por debaixo dessa luz que decidiu devolver o brilho à nossa cidade.
Pessoal, essa edição chega até vocês num sábado de manhã atrasado porque metade da newsletter (eu, sofia) estava viajando e aí, né, vida acontecendo. Espero que aproveitem com um bom café da manhã e nos encontramos na próxima edição na nossa costumeira quinta. Obrigada pela atenção de sempre <3