não coube numa conversa - entre conchas e bolinhas coloridas #06
pras coisas que se veem entre o choque da água e o rosa do céu
Quando eu era pequena, gostava muito de estar na água. Acho que ela ocupava todos os espaços do meu corpo, por dentro e por fora. Não sei ao certo qual era meu encanto mas parecia não me cansar. Eu gostava de toda e qualquer água; fosse na praia estendida por horas a fio ou banhos (sempre quentes, desde sempre) que eu enrolava apenas como uma criança, sem horários ou compromissos, pode enrolar. Entre o sabonete e o shampoo, me esticava para fora do box e virava páginas de gibis da turma da mônica ou qualquer livro que estivesse lendo na época. Guardo com carinho até hoje muitas páginas com cantos pesados pelos dedos molhados que não podiam esperar o fim do banho, curiosos, para continuar lendo. Ainda sim, meu destino aquático favorito sempre ficou na Praça da Bandeira.
Na cobertura do décimo quinto andar de um apartamento pequeno, sempre ficou a piscina, também modesta, da casa da minha avó. Piscina esta, por sinal, que hoje não consegue fazer a água chegar nem nos meus joelhos. Mas ela sempre foi suficiente para mim. A imagem raramente se alterava: vivia ali, nadando ou jogando água para o alto como se ela não pudesse acabar nunca. Em pé limpando a piscina ou sentado ao sol com o jornal do dia, meu avô, que observava a cena naquele silêncio de quem presta atenção disfarçado. Comigo, sempre a minha avó.
Não vou nem fingir que vou escrever sobre a minha avó hoje, para não perder a compostura. Me faltam palavras para sequer começar. Dona Glória, eu sei que você está lendo. Mas garanto, o texto de hoje não é sobre você. Mas ali a gente ficava, felizes e despreocupadas, deixando o sol ficar e tranquilas, porque víamos nossos pés no chão. No meio da água movimentada de sempre, estávamos estáveis. Nessa época, eu e minha avó ainda acreditávamos na segurança da previsibilidade. Ninguém tinha nos contado ainda. Precisamente por essa fé silenciosa e inabalável, tive um susto ainda criança.
Tenho uma única memória com os meus avós na praia. Às vezes acho até que foi sonho, mas minhas lembranças sensoriais impedem a confusão. Estava no mar de alguma praia do Rio, ainda bem criança. Brincava, não sei de quê. De repente, minha visão era um amontoado de areia, sal e onda. Tinha tomado um caldo. Aqueles poucos segundos se traduzem hoje em uma eternidade na minha cabeça. Parecia ouvir tudo, até o ronco da Terra. Eventualmente, fui puxada pra fora da água. Quando percebi que estava em terra firme, já chorava. Minha avó, sempre carinhosa, me afagou enquanto dizia que não precisava mais ter medo, que já tinha passado. E que da próxima, não precisava fazer aquela força, só esperar.
Eu não pensava nesse dia tinha uns bons anos. Mas no último fim de semana fui na praia com uma amiga e com o Rapha. Mar de inverno, água cristalina. Mesmo com um respeito soberano sobre a magnitude do mar que adquirira desde aquele primeiro susto, tomei mais um caldo. Mas dessa vez, enquanto via aquela mesma mistura de areia, sal e onda, entrei em um semi-transe dos nervos, e lá estava minha avó comigo de novo. Calma, pensei para mim mesma. Mergulha e espera passar. Foi o que fiz. Voltei logo para o lado de cima e, de longe, dei um sorriso pro Rapha para assegurar que estava bem. Não chorei dessa vez, mas ri um pouco. Pelo caldo desajeitado, pela repetição de sempre. E também porque já tinha aprendido que dar pé na água não era garantia de segurança alguma. Mesmo no raso, tinha sido surpreendida pelo mar quando mais nova. Mais no fundo, cá estava, levada de novo.
Sigo respeitando com distância a entidade que são as águas salgadas. Não vou muito pro fundo, tenho medo de ondas maiores, fico desconfiada das correntezas. Mas aquela alegria inevitável antiga ainda me habita. E pelo visto, meu instinto também. Li uma vez um antigo provérbio africano; a água sempre descobre um meio. No meio tempo, vou tirando meus pés do raso aos pouquinhos. E também vou me deixando afundar.
Algum dia dois olhos vão me ser suficientes para enxergar esse azul. A minha pele brilha, os olhos fecham, e meu cabelo resseca. Faz um frio mármore, e a cor opaca do inverno me faz ter saudades do outono. O outono, que na sua habilidade de ladrão honrado furta o lírio, furta a rosa e furta eu, deixando todo mundo meio bege para se derramar no céu azul, vermelho e roxo, junto de um fim de mar. A água me dá choque, e pela primeira vez em alguns dias eu percebo onde estou. Faz eu me lembrar que sou do tipo que precisa entrar na caixa para saber que tem um mundo inteiro fora dela.
Menino que nasce em montanha aprende desde o berço que bonita é a descida, mas a recompensa da vida é subir. Fui subindo até o último espaço plausível para ver que nascer na montanha não é ser da montanha, e que o que eu queria mesmo estava lá embaixo, brilhando num azul escuro que me berrava. Em resposta aos berros eu sussurrava, e sabia que mesmo assim era escutado. Me contava que ali eu era presente, tinha casa e tinha nome. Me falava de histórias do que se perdeu e do que nunca deveria ser achado. Foi na companhia do mar que eu fui colocando vírgulas na vida, e passei a usá-lo para separar momentos. A primeira vez que me mudei, o primeiro emprego, o primeiro desemprego, tudo eu fui dividir com ele. O mar, ladrão honesto, roubava de minhas costas uma mochila cheia de pedras e me devolvia vazia. Sempre voltava para casa sabendo que o que a gente carrega não é imutável ou intransferível, e que com o mar as coisas passam. Foi assim que eu descobri que eu, o barquinho e a tartaruga talvez sejamos um pouquinho da mesma coisa.
O vento ajuda os pássaros a não baterem as asas, e o sol fraco do inverno faz com que a areia não queime os meus pés. Sei de todos os dias em que estive aqui, e me lembro de todas as conversas que tive em frente ao mar. Ele, como bom fofoqueiro, não me deixa esquecer, e se tento, no choque de suas águas lembro de tudo. Lembro da cor de cada fim de dia, lembro dos olhos coçando do Bernardo, lembro do desrespeito que tinha na infância ao enfrentar cada onda de peito aberto e sair voando pela areia, lembro de me queimar num só dia o sol do carnaval inteiro e me lembro de cada pedaço de mar que eu prestei atenção quando tive a ajuda dos olhos da Sofia. Lembro disso tudo e me jogo no mar, com a vontade que um estrangeiro tem de ver o sol nascer pela janela da própria casa. Algum dia dois olhos vão me ser o suficiente pra enxergar esse azul, mas acho que nem quero mais que sejam. Não vou deixar meu mar castanho carregar a única verdade por aí.