não coube numa conversa - talvez eu fale da janela. #02
das pivotantes, das escotilhas, dos basculantes; das que se abrirem.
Ninguém lembra muito do segundo nada, né? Meus pais têm algumas das minhas primeiras memórias roubadas: primeiro passo, primeira palavra, primeiro movimento. Tenho algumas outras já em minha posse: minha primeira câmera, meu primeiro show, meu primeiro livro. Só que nossos segundos acho que a gente vai perdendo, quem sabe pela ausência do encanto inaugurado que foi embora. Essa, na verdade, é só a minha forma de dizer que estar escrevendo essa edição me assusta bem mais que ter escrito a última. Eu sempre achei a terça-feira pior do que a segunda.
Não por coincidência, eu já aprendi a fazer pequenos lares dentro do meu medo e reconhecer certos padrões. Se meu terapeuta estiver lendo, ele pode testemunhar gentilmente sobre um dos meus mecanismos. No meu desconforto, volto para um lugar que já não me cabe mais: o de ferramenta. Afinal, ocupo esse espaço textual com uma das minhas pessoas preferidas do mundo e, ainda sim, me vejo atormentada pela expectativa de tornar a minha participação aqui “útil”. Essa vigia da foto, por exemplo, é de um filme lindo que vimos essa semana. Confesso que, além de ter sido levada por ele como uma onda, me vi distraída por um farol distante: senti alívio porque poderia indicar algo novo na newsletter e portanto, tornaria minhas palavras úteis.
Só que aí logo reparei que fiquei encarando minhas janelas mais do que o costume durante a semana. As daqui de casa tem o parapeito baixo, quem vê logo se assusta. Sempre tive minha coleção de medos mas, por algum motivo, aquele monte de céu que invade a minha sala nunca me intimidou. Fixei mais ainda na janela do meu quarto, que sempre convida o som do mar pra entrar. A do banheiro da minha mãe, que traz a luz mais bonita da casa, mesmo que ela não dê lá tanta bola para isso. Ou a da área da cozinha, que encara de frente a parte de trás de outro prédio e me dá uns vislumbres de vidas caóticas e vizinhas. Acontece que eu já ouvi uma vez que essa minha preocupação com a minha utilidade não era lá muito justa. Úteis são os objetos, ora, que cumprem funções específicas para quem os usa. Janelas, por exemplo, servem para deixar entrar e sair um monte de coisa. Vento. Luz. Calor. Bicho. Se precisar, até gente. Mas não é por isso que eu gosto de janelas.
Mesmo com um papel tão claro, não consigo pensar em uma janela que tenha sido inspiração para poesia apenas por sua funcionalidade. O charme dessas palavras mora sempre nessa espécie de portal pro outro lado, no que se vê através. Na moldura que mostra o que se quer enxergar, estando lá ou não. É passagem. É forma, muito mais do que função. E é um monte de outra coisa. Algo tão mundano pode ser amado para além de sua utilidade. Venho descobrindo que eu também.
Dito isso, eu preciso falar d’A Metamorfose dos Pássaros, docudrama1 português de 2020 dirigido pela Catarina Vasconcelos. Ele é desses que logo virou referência de tudo e que em dois tempos me levou pela mão. Postei umas imagens numa conta do instagram que criei só para compartilhar frames de filme (se você quiser, pode conferir e seguir aqui) mas apesar da beleza arrebatadora, elas não dão conta de traduzir nem um terço. Como todo filme que vai se tornando um grande amor, consigo senti-lo se espalhando pelo meu corpo como uma raiz sem freios e sem pressa de se acabar. Fico rendida por um vocabulário limitado frente às tantas temáticas preferidas: memória, ausência, amor, família. Dizer que esse filme traz um olhar sensível e pessoal sobre elas parece pouco. Acho apenas que o resto do mundo não aprendeu a se mexer tal qual.
Lembram quando eu disse que esse espaço também nascia de uma amiga curiosa pelas palavras do Rapha? Sou eu que começo a newsletter mais uma vez então vou aproveitar a brecha e deixar meu pedido para ele como leitora também. Conta do vídeo bonito da Catarina falando do filme. Ainda não vi mas agora prefiro esperar para ter ele referenciado por você.
“Observávamos o mundo como se estivéssemos dentro de um quadro, e fora dele, a vida teimava em continuar.”
Deixo aqui esse pedacinho como meu último incentivo (por hoje) para vocês irem atrás. Tem naquele serviço de streaming que quer arrancar mais 13 reais por mês de todo mundo mas tem outros jeitos mais fáceis de assistir, que vocês já sabem bem quais são.
Falando em vidas que teimam em continuar, me despeço com outra indicação que eu ainda nem digeri por inteiro. Assisti, nessa terça, ao espetáculo Manifesto Transpofágico, da Renata de Carvalho, atriz e autodefinida “transpóloga”. Eu pretendia deixar para falar dele na próxima edição, mas na próxima segunda e terça (29 e 30 de maio), a peça faz suas últimas aparições pelo Rio. Por hoje, me limito a dizer que a beleza em cima daquele palco vem do desdobrar da Renata do seu universo implacável e acolhedor. O teatro tem entrada gratuita para pessoas trans e os ingressos estão disponíveis aqui.
Ver uma travesti se fantasiar com o próprio corpo para ter controle da sua história, mesmo com obstáculos muitas vezes violentos, já teria sido um afago em qualquer outro dia. Mas saí do teatro mais uma vez lembrada de um lema antigo que tenho bordado em uma camiseta.
Vou seguir encarando os céus até a próxima quinta e, quem sabe, me vejo nesse meio tempo. Até lá!
“A certeza de que as mães são os únicos deuses que não tem descrentes em terra.”
Eu queria era citar esse filme inteiro. Transcrever uma hora e quarenta minutos de palavras que me rasgam usando tudo o que mais me toca; Cartas, vazios, mares, pássaros, poesias, invenções. Junto disso, queria ter aqui absolutamente todos os frames que me costuram de volta, pra que eu não suma nunca no mundo das palavras que me são faladas. É um filme que fala de partida, que fala de falta, que fala de Portugal. É um filme que talvez fale de tudo, porque fala de mãe, mas assistir a Metamorfose dos Pássaros só me fez pensar nos meus avós, da parte de pai.
Meus avós, que são portugueses de todos os cantos; nascidos em Portugal, fugidos pra Angola, fugidos pra África do Sul, fugidos pro Brasil. Meus avós, que a poesia que tiveram em vida foi só a silenciada, dos malditos. O meu avô, com o rosto bruto e clássico de um velho português, barbudo e de cabelos longos, com cada fio pintado em um cinza brilhante, levou no peito, por alguns anos, uma bússola quebrada. O mesmo avô que um dia, quando eu tinha seis anos, me chamou pra conversar porque precisava me contar um segredo; ele tirou do bolso da camisa um maço de dinheiro com quase dez mil reais que ele estava juntando em segredo da minha avó pra operar o olho. Esse avô foi se perder na Angola pra encontrar a minha avó, também já perdida por lá. Minha avó, pequena, loira e também de cara portuguesa inconfundível, se encantou com a melancolia e foi transformando tudo da vida nesse sentimento. Minha avó, dos bibelôs, das plantinhas, das memórias. A mesma avó que na travessia dessa vida melancólica se inundou de projetos; vó Cabeleireira, vó Doceira, vó Artesã, vó Locatária, enfim, ela foi vó tudo, sempre apoiada pelo meu avô, que só dizia: “Faz o que tu quer que eu sei que vai dar certo.”
A Metamorfose me inunda dos meus avós contando a história que conecta, quase que com um fio de seda invisível, toda uma nação: a história de qualquer português que um dia foi parar no mar. Meu avô, da bússola quebrada, junto da minha avó, da melancolia plena, também são matéria de metamorfose dos pássaros. Os dois, que nasceram pra fugir, jogaram no mar todas as memórias que tinham de cada vida, e em cada vida que encontravam pela frente tentavam também deixar no mar as faltas que perseguiam os foragidos. Graças a esse fio de seda que atravessa cada português, posso reviver pra sempre um pedaço do meu avô, que a voz eu já me lembro pouco, porque era um homem de silêncios, e um pedaço da minha avó, que carrega hoje seus últimos fios de memória da vida. Eu, que cresci nesse berço português aqui no Brasil, pouco carreguei comigo o pedaço dessa seda que chamava meus avós pra partirem; Soube desde cedo que eu sou o que fica. Nessa de ficar ou partir, descobri, sem sair do lugar, que eu carregava comigo um outro pedaço dessa seda portuguesa; eu nasci pra sentir saudade. E aqui, no mesmo lugar de uma vida toda, sem muitas perdas pra me tirarem pedaços e sem muitas distâncias pra assistir, sinto saudades com a velocidade e o desespero de um português que foi se perder no mar.
A foto que eu vou deixar aqui não é do filme; quem tirou foi o meu pai, lá pelos anos 80, quando foi visitar um pedaço da nossa família em Portugal. Ele trouxe da viagem um álbum de fotos lindíssimo, em que cada registro de cada pessoa e de cada lugar não possuem explicações. Eu não sei se ela é tia, prima, neta ou só uma camponesa, e também acho que nunca vou saber. Como em A Metamorfose dos Pássaros, imaginar a vida também cria uma vida tão real quanto a que existiu, e eu não sei se importa tanto assim saber. Talvez essa dúvida fale mais do que a verdade poderia me contar.
Esse (quase) hábito de me fazer curioso e buscar conteúdo sobre as coisas que eu amo é mais uma página da vida que eu aprendi dividindo com a Sofia. Ela, de tanto compartilhar as coisas que ama comigo, se tornou dona do algoritmo do meu Youtube. Eu, principalmente com filmes, tentava criar uma distância que me mantivesse um eterno inocente frente a qualquer enredo, pra que eu pudesse tentar me sentir sempre como na primeira vez. A Sofia, ao contrário, não aguentou a curiosidade e foi logo se formar em Cinema. Foi logo nas nossas primeiras conversas que eu aprendi que o amor pelo processo de fazer um filme só acrescentava na minha experiência de assisti-los, e passei a querer saber de tudo, e a compartilhar de tudo com a Sofia.
O vídeo da Catarina fala d’A Metamorfose dos Pássaros da mesma forma que eu e a Sofia conversamos sobre o processo do cinema; tudo o que importa é o lado humano de estar fazendo isso, com as pessoas que queremos fazer isso, nos lugares que queremos fazer isso. Ela conta a história de alguns frames do filme e transborda o carinho por todo o significado de estar por trás das câmeras, realizando uma produção. É lindo, é fofo e é mais um retalho dessa obra que se costurou em mim.
Eu ainda queria falar de coincidências, de Galeano, de lupa, mas hoje fico só com esse filme, que repetindo a Sofia, virou referência de tudo. Esse enlaço no peito que ele me deu não vai desamarrar tão rápido, então fico aqui, estudando o porquê de cada nózinho.
Termo utilizado para designar estilo de documentário que conta com reconstituição de fatos de forma dramática, muitas vezes com atores.
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