Dez é um número criterioso e imponente, né? Esta é a décima edição da newsletter e acho que falo por mim e pelo Rapha quando confesso que não faço ideia para onde estamos indo. Vamos colecionando passos aos poucos e pedindo com educação para as palavras nos apresentarem, formarem padrões definitivos, nos mostrarem o caminho. Por pelo menos dez vezes isso aconteceu. Mas meu número da vez é quatro.
Sempre fui muito de itens favoritos. Nomes, lanches, cores, números, álbuns. E lógico, filmes. Desde que eu baixei o letterboxd, (oi, vó! o letterboxd é um aplicativo que é usado para catalogar os filmes que a gente assiste e os que ainda quer assistir. beijos.) institucionalizei na minha cabeça ter os quatro filmes preferidos. Não do momento, mas da vida. Até viver de novo. Se eu tentasse escrever sobre cada um deles de forma mais extensa, falharia de maneira constrangedora. No meu vocabulário eternamente limitado, ia ser difícil me traduzir de forma eficiente. Acho que tem coisas que não se explicam, talvez não completamente. Mesmo esses quatro filmes se apresentando para mim de formas distintas, essas cartas lançadas me demonstraram um baralho conhecido. E esse eu consigo decifrar.
“Elena”, da Petra Costa, foi o primeiro filme que mudou tudo. Uma viagem pelo trauma da diretora que perdeu a irmã mais velha anos atrás e agora tenta a reencontrar nas lembranças a qualquer custo. Um documentário que me ensinou o que poderia ser um documentário de um jeito que eu ainda não conhecia. Filme esse que me clicou o porquê de “tudo”. Viaja pelo luto, pela saudade, pelas ruas de uma cidade fantasma, pelo amor de uma irmã. Fala sobre memória.
“Notícias de Casa”, da Chantal Akerman, veio um tempo depois na minha vida. Já tinha aprendido na faculdade sobre como a diretora expandia o tempo mas esse aqui também me deu uns bons sustos. Outro documentário. Outra cineasta imersa na própria história. Outra fantasma pela cidade de Nova York. Chantal passeia pelas ruas onde já havia vivido enquanto lê as cartas da mãe que recebia na época, de um amor tão tenro quanto sufocante. Passeia pelo passado, pelas palavras, pela falta de ar que vem de uma mãe enlutada pelo ninho vazio. Fala sobre memória.
“Retrato de Uma Jovem Em Chamas", da Céline Sciamma, me constrangeu numa sala de cinema do Festival do Rio. Me senti exposta para todas aquelas pessoas, quase nua, como quem é descoberta sem querer. O choque de ver a forma que eu penso e sinto amor naquela tela. O longa nos desenha a história de Héloïse, jovem francesa do século 18, que está prestes a ser entregue para um casamento arranjado e, para isso, precisa ter um retrato feito. Marianne é uma jovem pintora incumbida da missão de a pintar em segredo. Um amor se desdobra desses olhares. Sobre ver e ser vista. Sobre uma paixão inevitável mesmo diante do tempo, das contravenções diversas, de um prazo de validade que se aproxima imperdoável. Fala sobre amor de uma mulher pela outra. Fala sobre memória.
Mais recentemente, “Aftersun”, longa de estreia da diretora Charlotte Wells, se colocou ali na minha lista de favoritos junto dos outros, de súbito. O filme retrata a jovem Sophie, menina de 11 anos que vive o que entendemos ser uma última viagem de férias com seu pai. Costurado entre o tempo presente e o passado, somos levados pelas imagens caseiras e olhar de Sophie, que adulta tenta encontrar vestígios naquela viagem do que viria a acontecer. Caminhamos com ela por desconfianças no silêncio, por um medo progressivo, por alegrias inauguradas já por despedidas. Testemunhamos o amor de um pai em meio à um mundo que se arruina a cada dia. Aqui se fala sobre silêncio, sobre inocência, sobre melancolia. Fala sobre memória.
Desses filmes todos que parecem canções distintas de um mesmo disco arranhado, eu me encontro. Levo eles comigo como quem reza a cruz em nome do pai, do filho e do espírito santo. Cada um em seu canto. Olhares femininos sobre amor, memória e família. Gosto de pensar que me vivo eternamente embaraçada no meio desses temas conjuntos que acabam por me definir, mesmo que nem eu saiba muito bem como.
Acontece que se esse quarteto hoje é possível, se eu hoje sou possível, me devo ao meu primeiro filme preferido. Em 2000, ano que eu nasci, o Cameron Crowe estreou o que viria a ser meu primeiro grande amor. Anos depois eu via, ainda nova demais, “Quase Famosos”. Sei que hoje me alonguei pelos filmes mas desse aqui eu prefiro oferecer pela curiosidade. Não conversa tanto com aqueles outros grandiosos quatro, mas segue me fazendo companhia, mesmo que guardado no bolso. Hoje gosto de lembrar de onde veio meu quase-primeiro-passo. Como eu sempre me senti em busca de sentir parte. E até que gosto de admitir que, no fundo, eu estou sempre falando das mesmas coisas.
Perdido e embaçado, com os olhos marrons que não sabem o tamanho do que a vida pode planejar, tive como maior estrela guia para o destino as pessoas que me cercavam. E tive sorte. Fui menino-mochila, que se enfiava nas costas do pai ou da mãe para poder assistir a conversas, e foi assim, sem querer, que eu planejei a minha sorte. O talento dos meus pais para conhecer gente doida e a fortuna do meu instinto de assistir às interações entre eles foi a maior influência para o meu olhar pela vida. Aprendi muito criança a enxergar o sensível de todo maluco, que junto do álcool abraçava um dos dois caminhos possíveis: ou vira um chato ou vira poeta.
Precisei deixar de ser menino-mochila para cair no normal e encontrar as minhas referências em pessoas intangíveis. Fui crescendo e mastigando obra após obra, colecionando pessoas que eu queria ser na vida e tentando achar um jeito de ser como elas. Sempre muito frustrado de carregar, ao mesmo tempo, uma certeza e uma indecisão, eu ia fantasiando a vida e inventando um mundo que me coubesse de um jeito que eu não era, só para saber que alguma coisa podia se encaixar. Até o dia em que eu assisti “Boyhood”. Eu até hoje não tive uma conversa com alguém que também amasse esse filme, mas foi “Boyhood” que me ensinou sobre as infinitas possibilidades de se contar uma história.
Muito além da singularidade que foi “Boyhood”, esse filme serviu para me apresentar o Linklater, que foi uma das maiores influências da minha adolescência. Os filmes de diálogos enormes e de roteiros tão diferentes me fizeram ver um pedaço da arte que eu via sendo o menino-mochila na infância. Quis saber tudo sobre ele e descobri na vida o amor pelo lado humano que comanda qualquer obra que eu consuma. Criei ali o meu hábito eterno de assistir entrevistas e de querer ouvir as minhas pessoas favoritas falando sobre qualquer coisa na vida. Acho que é ouvindo um diretor de cinema falar de música, ou um desenhista falar da natureza que eu preencho o ouro do que tento ser. Vou deixar aqui o vídeo do Linklater que mais me influenciou, porque nas entrelinhas de falar sobre aprender a fazer cinema sozinho, ele me mostrou que, no final, uma das coisas mais importante para se tornar um realizador é a motivação, e isso não tem quem te ensine.
Eu segui os últimos anos da minha adolescência me encharcando de cinema e música, ignorando a parte fundamental da certeza que eu carregava: eu não lia absolutamente nada. Nem me interessava muito. Eu fui ler o meu primeiro livro, por gosto e vontade, só aos vinte anos. Não tinha como. O livro que me fez ler todos os livros da minha vida foi o inevitável “Cem Anos de Solidão”, que igual ao “Boyhood” foi a obra que me fez pensar “Literatura também pode ser isso?!”. Fui fazendo o meu caminho encantado e espantado com cada livro novo que eu lia, até que me apareceu esse poema:
Era capaz de atravessar a cidade em bicicleta só pra te ver dançar
E isso
diz muito sobre a minha caixa torácica
Esse é o poema mais famoso da Matilde Campilho, e abriu caminho para a minha maior mudança, já adulto. Apesar desse ser um poema curto, eu acho a Matilde inclassificável. Não faz poesia, não faz prosa, não faz texto. É muito própria. Passei a carregar o seu livro, "Jóquei", como uma criança carregando um ursinho de pelúcia. Me apaixonei por essa linguagem, mudei toda a minha voz de pensamento e comecei o que eu sempre soube que queria fazer; eu escrevi. Encontrei nos textos da Matilde a voz que eu queria ter, e comecei a escrever para tentar conversar com ela. Nessa conversa que a gente fazia eu encontrei meu próprio idioma. Cada texto que eu escrevo só existe porque, lá no fundo, eu tô conversando com um monte de gente: a Matilde, o Galeano, a Sofia. Até com o Juninho Pernambucano eu tento conversar de vez em quando. Cada emaranhado de palavras tem um destino, e são esses destinos que dão minha voz. Pessoas.
Muito acima de qualquer obra, eu escuto e assisto tudo o que posso de cada pessoa pra poder receber um pouco da humanidade dela. Acho que ainda é o jeito do menino-mochila de assistir conversas alheias pra se sentir mais perto de quem admira. Vou encerrar deixando essa entrevista muito fofa da Matilde, de quando ela lançou o “Jóquei”. Eu assisto quase todo mês para relembrar que ela conseguiu se fazer de vírgula na minha vida e mudar tudo o que passei a falar.
Que beleza de texto!
Obrigada por escrever!