Como desaparecer.
a não coube, de volta.
“O coração, se pudesse pensar, pararia”.
Deve ter mais ou menos uns dois meses. Tem que ter sido Setembro, o mês do silêncio interminável. Falei qualquer coisa em voz alta e não gostei do que ouvi. Saí de casa. Já no metrô, decidi que o meu destino seria uma das minhas livrarias favoritas de Madrid (essa aqui), ali em Lavapiés. Eles são um sebo pequenininho, de bairro. Minha sessão preferida fica logo na entrada. Em pequenas caixas de madeira, eles deixam livros embalados em papel kraft. Junto deles, uma etiqueta com uma descrição dos temas abordados na obra. Ou então relatos vagos sobre o autor, seu país de origem. Nesse específico, tinham umas linhas escritas à mão sobre solidão e divagações diárias. Tive que comprar. Sentei num banco da rua em uma frestinha de sol e abri o pacote com cuidado. Era o Livro do Desassossego, do Fernando Pessoa. Ou melhor, era o “Libro del Desasosiego”. É dele essa citação que eu abri o texto. Sorri de assombro. Explico: quando eu já estava no ensino médio, minha escola inaugurou uma pequena biblioteca. Nessa época, eu já tinha toda a certeza do mundo que estudaria cinema na faculdade. Ainda tinha os resquícios de infância de ler tudo que me aparecia pela frente. E lá vivia um exemplar desse livro atormentado. Lembro de nunca levá-lo pra casa, receosa de ser incapaz de terminá-lo. Acabava sempre revirando aquelas páginas em dias como esse de Setembro. Escolhi acreditar que ele voltou pra mim na hora certa. Meu pequeno oráculo de cabeceira.
Quando eu me mudei pra Espanha pra estudar direção, mais de um ano atrás, sabia que meu corpo estava suplicando por novos ares. Lembro de ter publicado uma última vez nessa newsletter dias antes de embarcar. Achava que ia engatar na escrita logo que me acomodasse. Desde então, Madrid se provou um imenso vendaval. Me deu e me tirou muito. A mera tentativa de descrever o que foram os mais de quatrocentos dias vividos aqui me parece um exercício frívolo. Pago os preços das tantas sortes de imigrante que eu tive. Ganhei um novo idioma, novos amigos, novos olhares; pequenos inúmeros milagres. Vesti uma saudade da qual não posso me despir, já que esta fez um lar tão cômodo no meu peito. O que entreguei, em troca, foram as minhas palavras. Nesses meses todos, fui incapaz de escrever para mim, se não por meros lampejos que logo se esvaíam, engolidos pelo presente inflexível. Aos meus amigos guardei todas as flores, esses sim seguiram recebendo meus rabiscos, que sempre buscaram replicar o encanto que eu sinto ao lado deles. São eles também que já se acostumaram à minha memória obediente, acham graça quando sou eu que sigo com as recordações que eles já deixaram ir embora. Sofia, uma eterna máquina de lembrar. Não é um fardo mas toda memória ocupa espaço. E quando eu não escrevo, quando eu não me escrevo, eu me esqueço. Esqueço de mim. Minha Madrid, eu me entreguei tanto a você que sinto que fui sumindo.
Reparei que desde que tinha mergulhado em um terceiro idioma, parecia não saber mais nenhum. Será que eu estava desaprendendo? Será que as palavras não iam voltar a me ver? Foi justo numa visita em que elas me foram devolvidas. Eu estava em Lisboa, outra vez. Naquelas ruas tão cheias de cor e de melancolia, eu acabei por construir uma máquina do tempo particular. Não divido, não empresto, nem explico. Nessa cidade, que já considero uma velha amiga a essa altura, me perco com prazer. Já estive ali buscando de um tudo, mas essa deve ter sido a primeira vez que me procurava por cada esquina. Onde foi que eu tinha me escondido? Cada vez que meu pulso acelerava nas escadarias, lembrava de mim. Será que eu estava mesmo desaparecendo? Ou vai ver estava virando bicho qualquer? Vai saber. De vez em quando, acho que eu morro e nasço todo dia outra vez. São pedaços que se partem e inauguram algum novo. Parece que a solidão é um túnel escuro, no qual eu me agacho cega em busca de saída. Cavo um buraco fundo e acabo por me encontrar cada vez. Minha Lisboa, cidade que já ganhou a aposta contra o tempo, achei graça que até o meu relógio você me fez esquecer. Me tomou a pressa, me emprestou espelhos. Me faz ver. A cidade do poeta desassossegado fez meu coração bater forte outra vez.
Desde que voltei, venho me beliscando. Quero garantir que existo mesmo, que não é só sonho que está crescendo aqui. Sou eu. Fazia mais de ano que eu não escrevia para mim. Achei que tinha perdido meu estranho caminho. O retorno para esse lar um tanto improvisado, confesso, me fez sentir que estou pousando de novo pela primeira vez. Vislumbro imagem qualquer na rua, anoto com caneta e papel. Busco meu pulso, agora sem horário, para imaginar que horas devem ser na Praça da Bandeira. Será que é de lá que nascem as minhas palavras? O fuso me garante sempre um eterno mini futuro. Me resta aguardar para ver. Abro a porta para o mistério, convicta que não vou deixar de perguntar. Sei que volto a existir aos poucos. Sei que a palavra vai voltar a me visitar.




Me fez pensar e sentir muito. Fico feliz que você está se beliscando de volta pra existência. Bem-vinda outra vez!